Soul (2020)

Em busca do oceano…

Mais um excelente filme para o hall de grandes acertos da Pixar! Eu sou apaixonado pelos filmes do estúdio, desde a minha infância, onde eu assisti eternas paixões como “Procurando Nemo” e “Monstros S.A.”. Nos últimos anos, dois filmes me marcaram profundamente e se tornaram meus favoritos, sendo eles “Divertida Mente” e “Viva: A Vida é Uma Festa”. Com “Soul”, percebo que o estúdio está cada vez mais se preocupando em fazer animações para o público adulto, embora as animações da Pixar sempre tenham sido muito cabeça. Em “Soul”, acompanhamos um professor de música em uma escola que está esperando uma grande chance para ser um músico de jazz renomado e, assim, está postergando a sua felicidade sempre para “mais tarde”. O filme é intenso, faz escolhas acertadíssimas e nos envolve ao mesmo tempo em que nos leva a pensar em nossas escolhas…

É um verdadeiro tapa na cara.

Assisti ao filme porque, como já disse, AMO as animações da Pixar e sempre amarei – não tinha nenhuma criança comigo, e gostaria de saber, se alguém puder compartilhar, qual foi a reação delas ao filme! Acredito que a criança que vê “Soul” foca na 22, no barco todo colorido do Moonwind, na alma do Joe em um corpo de gato, e em alguns momentos divertidos que são feitos para agradar a qualquer público… a mensagem final, no entanto, pega de jeito aqueles adultos que se reconhecem em Joe Gardner, nem que parcialmente. Como adulto, eu adorei a animação! Acho que ela consegue equilibrar bem o tempo de Joe Gardner na Terra com o que quer apresentar do “Grande Antes” (“Great Before”, em oposição ao “Great Beyond”), e é interessante como o estilo muda quando em diferentes lugares, a Pixar sempre concebendo ideias incríveis.

Joe Gardner ensaia um grupo de adolescentes em uma escola de Nova York e recebe a proposta de ser professor em tempo integral, mas ele não sabe se é isso o que ele quer para a vida dele – logo depois, ele ganha a oportunidade de tocar com Dorothea Williams, uma jazzista famosa, e ele acha que aquilo vai mudar a sua vida… na empolgação e no descuido, no entanto, ele acaba caindo em um buraco e morrendo. Vemos, então, a alma de Joe Gardner partir em direção ao “Grande Além” (excelente concepção da alma, que é simples, mas lembra o Joe humano), mas como ele não quer morrer, ele faz de tudo para voltar, e é assim que ele acaba caindo no “Grande Antes”, o que eu achei a melhor ideia do filme… muitas vezes já nos perguntamos o que vem depois da vida, mas e o que vem antes? “Soul”, então, apresenta todo um novo e interessante universo.

Estamos no “Grande Antes” ou, como agora o chamam, o “Seminário Você”. Aqui, almas que ainda não nasceram correm por campos e ganham traços de personalidade que apresentarão assim que forem para a Terra – cada alma, no entanto, tem um espacinho em branco no patch que trazem no peito, que deve ser preenchido pelo que eles chamam de “faísca”: algo que lhes chama a atenção, que vai ser marcante e, de certa forma, definidor da vida que eles levarão na Terra. Gosto muito de todo o conceito e gosto particularmente do uso de animações que lembram mais o 2D, ou, em algumas ocasiões como no Salão de Tudo, o esboço. Afinal de contas, aquela é uma ideia abstrata, um lugar imaterial que apenas simula a vida na Terra, para que as alminhas possam ser despertadas e então descer para a vida real… achei tudo realmente brilhante!

Momentos de comédia são perfeitamente equilibrados para amenizar o clima dessa reflexão toda. Gosto particularmente de 22, a alma difícil que é designada a Joe quando ele finge que é um mentor – essa alma não quer ir para a Terra e, por isso, passou milhares de anos no Seminário Você, dando dor de cabeça a uma série de mentores como Abraham Lincoln ou a Madre Teresa, o que rende excelentes tiradas ao longo do filme, por sinal! 22 é o carisma extra de que o filme precisava para chamar a atenção, também, das crianças, e penso um pouco em Joe e 22 como o público de “Soul”. Enquanto nos vemos muito em Joe, por exemplo, será que as crianças conseguiam se ver em 22? Agora, ambos vão se ajudar: Joe quer encontrar uma maneira de voltar para o seu corpo a tempo da apresentação com Dorothea, e 22, ao contrário de tudo o que diz, talvez queira encontrar sua faísca.

Vários conceitos de “Soul” são interessantíssimos, como as pessoas que estão tão envolvidas nas coisas que estão fazendo que parecem transcender, e acabam na “Zona”, um lugar onde as almas se encontram, por exemplo… ou aquelas pessoas que se tornaram “almas perdidas”, consumidas pela ansiedade e por obsessões. Joe Gardner acaba conseguindo retornar à Terra, mas ele está tão afoito e pensando em si mesmo, como sempre, que ele acaba fazendo tudo de qualquer jeito e a confusão faz com que 22 caia em seu corpo, e ele caia no corpo de um gato que tinha sido trazido ao hospital para uma gatoterapia. Daqui em diante, estamos de volta à Terra, e o filme apresenta algumas das suas melhores cenas, que podem ser divertidas ou reflexivas, ou ambas ao mesmo tempo… talvez, agora, 22 encontre sua faísca; e talvez Joe aprenda o que é viver.

Gosto muito das cenas da Terra, especialmente porque 22 está aprendendo a não achar a Terra tão estúpida assim e começando a ter vontade de nascer, e Joe Gardner pode começar a perceber o que estava fazendo com a sua própria vida… 22 tem dois momentos excelentes no corpo de Joe Gardner, o primeiro deles quando ela ajuda uma aluna de 12 anos que estava pensando em desistir da música, mas, na verdade, ama aquilo; e o segundo conversando com o barbeiro a que Joe Gardner vai há anos, mas de quem não sabe absolutamente nada porque nunca se preocupou em perguntar. A experiência toda é tão intensa que, na hora de devolver a Joe o corpo, 22 não quer: essa é a sua única chance de achar a faísca, ela diz. Então, na confusão, eles acabam sendo capturados por Terry e levados de volta ao Grande Antes, ou ao Seminário Você.

A briga de Joe e 22 ali é pesadíssima e triste… Joe é egoísta o suficiente para dizer a 22 que ela só estava gostando da Terra porque a estava experimentando através dele, incentivando um pensamento que consome lentamente 22 há muito tempo: que talvez ela não seja boa o suficiente. Assim, ela entrega para ele a passagem para a Terra que ela ganhou (ela encontrou sua faísca!), porque era o que ele sempre quis mesmo, e ele pula de volta à vida, faz um show com Dorothea, recebe os aplausos do público… mas ele não se sente exatamente como esperava se sentir quando algo assim acontecesse. Quando ele diz isso a Dorothea, ela conta a história de um peixinho que estava “procurando o oceano”, até descobrir que, na verdade, ele já estava no oceano, e o oceano era apenas água… talvez Joe já estivesse o tempo todo no seu “oceano”, só não soube ver.

O fim do filme traz um retorno de Joe ao mundo das almas através da Zona, quando ele está tocando piano e “transcende”, e então ele procura 22, agora uma Alma Perdida, para entregar-lhe sua passagem e dizer que ela é boa, sim, muito boa… eu acho que o filme tem duas mensagens importantes. Uma delas tem a ver com 22 e a conclusão a que Joe chegou a respeito da “faísca”: que esse é o propósito da sua vida, mas Jerry explica que não é, que as coisas não são assim tão simples. Afinal de contas, é por isso que é uma “faísca”, apenas algo que vai iniciar outra coisa muito maior. No fim, não sabemos exatamente qual é a “faísca” de 22, mas importa? Quantas pessoas estão aqui, em vida, sem saber exatamente qual é a sua “faísca”? E não tem problema. Não podemos viver em busca de um “propósito” eterno e nos esquecermos de, de fato, viver, não é?

O mesmo vale para Joe Gardner. Eu acho, no fim, que o “propósito” dele, se ele quiser chamar assim, era ensinar e inspirar, como ele fez com o cara que o chamou para tocar com Dorothea, com a aluna de 12 anos e, por fim, com 22… mas ele não se permitia ver e entender isso achando que ele devia estar fazendo outra coisa da vida, como tocando jazz em um clube com Dorothea Williams. E quantas vezes nós deixamos de viver o que temos no momento para postergar essa felicidade até “depois” de alguma coisa? E se esse depois for tarde demais? E se morrêssemos hoje, como o Joe, e percebêssemos que não fizemos nada da nossa vida? Precisamos parar de projetar a felicidade para “depois que eu terminar a faculdade”, “depois que eu tiver um bom emprego”, “depois que eu construir a minha casa” e aprendermos a ser feliz agora, nesse momento.

Viver cada minuto.

É o que Joe vai fazer com a sua segunda chance. É o que todos devíamos fazer.

 

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